Hoje iremos dar sequência ao texto que foi publicado na semana passada, onde se falou sobre as disfunções musculoesqueléticas nos pacientes com enxaqueca em artigo publicado em 2017, na revista Cephalalgia, por Kerstin Luedtke e colaboradores.

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Dando sequência, vimos que o grupo de testes identificado por um consenso internacional como o mais útil para o exame físico nos pacientes de cefaleia (HAT’S) detectou as disfunções musculoesqueléticas mais prevalentes em indivíduos com enxaqueca, quando comparados aos participantes sem cefaleia (exceto a postura anterior da cabeça). Somente seis (teste de flexão crânio-cervical, palpação dos pontos gatilhos, teste passivo de flexão-rotação, movimentos póstero-anteriores centrais e unilaterais em C0-3, avaliação da coluna torácica e reprodução e resolução de sintoma) dos onze testes originais alcançaram significância estatística entre enxaqueca e o grupo que não sofria de cefaleia. 93% dos pacientes avaliados apresentaram ao menos três disfunções musculoesqueléticas distintas. Não houve diferença estatisticamente significativa entre os pacientes de enxaqueca episódicos e crônicos para qualquer um dos testes exceto para reprodução da cefaleia durante a pressão manual sobre a articulação cervical (e a subsequente resolução dos sintomas durante a pressão mantida).

 

Os testes demonstraram ser práticos e possíveis de serem realizados em um cenário clínico (30 minutos de duração).

 

A prevalência das disfunções musculoesqueléticas

 

A alta prevalência de achados musculoesqueléticos nos pacientes com enxaqueca, contrastam com dois estudos previamente publicados que investigaram as disfunções musculoesqueléticas na enxaqueca, cefaleia tensional e cefaleia cervicogênica (Jull, Amiri, Bullock-Sxton et al. 2007; Zito, Jull, Story, 2006), e que não encontraram dados estatisticamente significativos nos indivíduos com enxaqueca. Um desses dois estudos incluiu participantes muito jovens com idade média de 23 anos (Zito, Jull, Story, 2006) e ambos diagnosticaram a cefaleia cervicogênica de acordo com o Grupo Internacional para o Estudo da Celaleia Cervicogênica (CHISG – Sjaastad, Fredriksen, Pfaffenrath, 1990). Embora seja frequentemente utilizada em pesquisas, a comparação entre os critérios da CHISG e IHS (International Headache Society) resulta em diferentes classificações, pois a primeira permite que pacientes de cefaleia cervicogênica apresentem alguns critérios, como náusea, vômito, fono e fotofobia que a segunda descreve como características típicas de enxaqueca. Alguns estudos que investigaram pacientes com enxaqueca comparando com indivíduos saudáveis utilizando os critérios da IHS encontraram problemas musculoesqueléticos que estavam alinhados com os resultados do presente estudo (Fernández-de-las-Peñas, Cuadrado e Pareja, 2006; Bevilaqua-Grossi, Pegoretti, Gonçalves et al. 2009; Watson e Drummond, 2012).

 

A classificação da IHS versão III beta descreve tensão muscular cervical como um possível sintoma premonitório da enxaqueca. Essa interpretação leva a conclusão de que a dor cervical é realmente parte da sintomatologia da enxaqueca e não uma consequência da postura ou de uma potencial patologia da coluna cervical.

 

Baseando-se nos achados do presente estudo, a dor cervical não é simplesmente um sintoma do ataque de enxaqueca (porque a proximidade do último ou subsequente ataque não influenciou o resultado do teste) mas persiste ao longo do ciclo sendo refletido pelas mudanças no sistema musculoesquelético que podem ser detectados pelos testes do exame físico.

 

Disfunções musculoesqueléticas – possíveis explicações

 

Três modelos diferentes podem explicar a alta prevalência dos problemas musculoesqueléticos nos pacientes com enxaqueca.

 

  • Enxaquecas frequentes causam tensão nos músculos cervicais, resultando em disfunções articulares devido, por exemplo, a mobilidade reduzida;

 

  • Disfunções articulares ou musculares pré-existentes funcionam como um gatilho para os ataques de enxaqueca;

 

  • Em um sistema altamente sensibilizado (enxaqueca), a pressão aplicada durante a palpação articular é mais provável ser interpretada como dor do que em um sistema não sensibilizado (indivíduos saudáveis).

 

Existem poucas evidências para dar suporte a qualquer uma dessas hipóteses. As pesquisas experimentais com aperto dentário indicam que a tensão muscular pode teoricamente de fato provocar dor articular (Jensen, 1999; Takeuchi, Arima, Ernberg et al. 2015), portanto a dor articular cervical pode ser causada pela tensão muscular cervical premonitória. Todavia, não existem estudos sugerindo que os pacientes de enxaqueca, de fato, possuam um aumento da tensão muscular. Foi levantada a hipótese de que as disfunções cervicais pré-existentes poderiam ser um gatilho para os ataques de enxaqueca (Vincent, 2011), sendo experimentalmente induzidas por uma pressão sustentada nos segmentos mais altos da coluna cervical (Watson e Drummond, 2012), entretanto somente a minoria das cefaleias provocadas pela pressão assemelharam-se aos ataques de enxaqueca.

 

A sensibilização central e periférica foi extensamente investigada no passado (Lovati, D’Amico, Rosa et al. 2007; Olesen, Burstein, Ashina et al. 2009) e explica parcialmente o aumento dos limiares de dor à pressão (Andersen, Petersen, Svendsen et al. 2015) em pacientes com enxaqueca e a alta presença de pontos gatilhos ou até mesmo respostas dolorosas a palpação. Todavia, até mesmo um sistema mais sensível com uma maior suscetibilidade para diminuir seus limiares sensoriais (Schwedt, Zuniga e Chong, 2015) não podem explicar a redução da mobilidade torácica ou dificuldades no recrutamento dos músculos flexores profundos da coluna cervical. Seja qual for a explicação biológica, essa apresentação clínica significante nos territórios de inervação trigeminal e cervical indicam uma constante interação trigemino-cervical na enxaqueca.

 

Ainda que as mudanças observadas sejam uma consequência de repetidos ataques de enxaqueca, ou possam engatilhar mais ataques, ou ambos, não pode ser determinado pelas evidências atuais. Embora não tenham sido encontradas diferenças estatisticamente significativas entre os pacientes de enxaqueca episódicos e crônicos – exceto para reprodução da cefaleia durante a palpação manual – houve uma tendência na maioria dos testes para níveis mais altos de disfunção no grupo de enxaqueca crônica. Para conseguir um maior esclarecimento da influência das disfunções musculoesqueléticas nas cefaleias, um estudo randomizado controlado deve ser realizado para investigar se uma redução das disfunções musculoesqueléticas através da terapia manual também resultará em uma redução da intensidade, frequência e duração dos ataques de enxaqueca.

 

As implicações clínicas dos achados atuais seriam que é muito importante complementar o diagnóstico da enxaqueca, que é somente baseado nos relatos dos pacientes com um exame físico abrangente para detectar as potenciais disfunções musculoesqueléticas a serem tratadas. O tipo e a severidade dessas disfunções, influenciará na tomada de decisão fisioterapêutica e na detecção de qual o tipo de intervenção seria a mais apropriada (exemplo: mobilização articular, exercícios para os músculos cervicais ou ambos).

Limitações do estudo:

As limitações deste estudo em relação à generalização dos resultados devido ao recrutamento de pacientes em uma clínica especializada em cefaleias se aplicam: os indivíduos que se consultam com especialistas tendem a estar mais incapacitados se comparados aos que não recebem cuidados especiais. Essa é a explicação mais provável para a similaridade dos achados entre pacientes episódicos e crônicos dessa amostra. Os pacientes episódicos tiveram uma média de sete dias de dor de cabeça por mês (0.5-14 dias). Particularmente, aqueles pacientes na parte mais alta da escala, não podem ser considerados biologicamente diferentes dos crônicos. A frequência da cefaleia e os critérios de exclusão como as patologias diagnosticadas foram baseadas nos relatos dos pacientes e não, por exemplo, em um diário ou anotações médicas. Isso pode ter adicionado um viés de recall/notificação ao número de dias de dor de cabeça por mês e também pode ter levado à inclusão de algumas patologias desconhecidas ou sem relevância para o paciente. No entanto, a maioria dos participantes apresentou sintomas inalterados por vários anos e alguns mantiveram um diário de dor por outras razões além deste estudo.

 

O nível de confiabilidade entre avaliadores não foi estabelecido para todos os testes incluídos; portanto, para evitar a influência das diferenças entre examinadores e, assim, introduzir heterogeneidade nos dados, apenas um examinador realizou os testes.

 

De forma geral, os pacientes de enxaqueca apresentaram mais sensibilidade na região cervical, consequentemente o fisioterapeuta deve ter suposto, após os testes iniciais, se o participante era um paciente com enxaqueca ou do grupo controle. No entanto, a maioria dos pacientes ocultou seus diagnósticos até o final do exame e houve exemplos de participantes do grupo controle com regiões cervicais extremamente sensíveis e exemplos de indivíduos com enxaqueca que responderam apenas a um pequeno número de testes, portanto, supor não resultou em cegamento.  Em um futuro projeto, pode ser útil comparar dois tipos de diferentes de cefaleia, por exemplo enxaqueca versus tensional, para reduzir o risco de cegamento após os testes iniciais e para obter mais informações sobre o valor discriminativo dos testes para distinguir entre diferentes fisiopatologias.

Em resumo, usando uma abordagem metodológica rigorosa com mais de 200 participantes e validando um consenso internacional de testes de avaliação de cefaleia, encontramos uma robusta prevalência de disfunções musculoesqueléticas. Essas disfunções não são simplesmente parte do ataque da dor de cabeça, e os dados sugerem uma interação recíproca entre os sistemas do nervo trigêmeo e da coluna vertebral cervical, sendo uma característica da enxaqueca. Um conjunto de seis testes de exame físico é recomendado como o agrupamento mínimo para detectar disfunções musculoesqueléticas típicas em pacientes com enxaqueca potencialmente tratáveis pela fisioterapia.

 

Pontos relevantes do estudo:

 

  • Os pacientes de enxaqueca apresentaram uma quantidade significativamente maior de disfunções musculoesqueléticas quando comparados aos indivíduos sem cefaleia;

 

  • Os pacientes de enxaqueca apresentaram um número maior de pontos gatilhos, diminuição de mobilidade da coluna cervical alta, maior sensibilidade dolorosa à palpação das articulações da coluna cervical alta, redução da mobilidade combinada de flexão e rotação, diminuição da mobilidade da coluna torácica e menor ativação da musculatura estabilizadora cervical quando comparados ao grupo de pessoas saudáveis (controle).

 

Dr. Jorge Arrigoni – Equipe Head & Neck Fisioterapia

 

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