A entidade com a maior autoridade para a classificação das dores de cabeça primárias é a Sociedade Internacional das Cefaleias (International Headache Society – IHS). O seu primeiro sistema de classificação foi publicado em 1988, com revisões em 2004, 2013 e 2018. Hoje vamos falar sobre o modelo de classificação das cefaleias primárias.

(leia também: a perspectiva neurocientífica sobre o tratamento fisioterapêutico da cefaleia)

As classificações das condições de saúde visam discriminar entre as apresentações clínica – sintomáticas e as abordagens etiológicas. Uma abordagem clínica – sintomática considera um grupo de sintomas e suas características ostensivas, enquanto o sistema etiológico se baseia no reconhecimento de uma causa biológica (Robbins, 1989). O sistema atual da IHS não se baseia na biologia e fornece uma classificação baseada em características clínicas, sintomas e na exclusão de outras desordens (Lipton, Stewart e Cady, 2000). Enquanto os mecanismos fisiopatológicos permanecem obscuros, seu sistema enxerga como entidades clínicas separadas as condições das dores de cabeça primárias: enxaqueca, tensional episódica e as trigeminais autonômicas (IHS, 2013; Lipton, Diamond, Reed, Diamond e Stewart, 2001; Cady, 2007; Cady, 2007). Portanto, a classificação da IHS continua sendo revista e desafiada por perspectivas alternativas.

 

Os modelos de classificação das cefaleias

 

De acordo com a classificação da IHS, a enxaqueca é caracterizada por uma área de dor unilateral, qualidade latejante/pulsátil, com intensidade moderada a severa, duração do ataque de 4 a 72 horas, acompanhada de náusea, vômito, foto e fonofobia e agravada pela atividade física de rotina. Em contraste, a cefaleia tensional episódica é tipificada por uma área de dor bilateral, qualidade de dor descrita como pressão/aperto/peso, com intensidade de baixa a moderada, duração do ataque de 30 minutos a 7 dias, acompanhada de não mais do que fotofobia ou fonofobia (geralmente somente uma das duas) e não agravamento pela atividade física de rotina. Em relação a área, intensidade, qualidade da dor e atividade física é somente necessário a presença de dois quesitos para configurar o diagnóstico; quanto aos sintomas associados a enxaqueca somente a presença de um sintoma configura o diagnóstico. A ausência de qualquer outra doença orgânica é um outro ponto importante.

Aqueles que defendem a separação da enxaqueca e cefaleia tensional episódica como desordens distintas afirmam que a primeira é sustentada por mecanismo neuro – vascular e que a segunda teria sua origem de outras fontes – distress emocional e atividade muscular anormal (Peres, Gonçalves e Krymchantowski, 2007). Todavia, o fato das dores de cabeça primárias constituírem entidades heterogêneas com processos fisiopatológicos distintos ou expressões clínicas de um processo comum tem sido matéria de um vigoroso debate científico (Cady, Schreiber, Farmer e Sheftell, 2002; Cady, 2007). No centro dessa polêmica estão a enxaqueca e cefaleia tensional episódica, as dores de cabeça primárias mais comuns (Cady, Schreiber, Farmer, Sheftell, 2002, Cady, 2007), e as mais difíceis de serem distinguidas (IHS, 2013; WE W, 1972; Featherstone, 1985; NH R, 1998; Waters, 1986; Sacco, 2008).

Na metade do século 19, Willis propôs que enxaqueca e cefaleia tensional existiam em um “continuum” (Cady, 2007 e Couch, Ziegler e Hassanein, 1975). Os fundamentos da “teoria do continuum” forneceram uma perspectiva alternativa ao modelo atual da IHS, que enxerga enxaqueca e a cefaleia tensional episódica como entidades fisiopatológicas distintas (IHS, 2013; Lipton, Stewart, Cady et al, 2000; Lipton, Diamond, Reed, Diamond e Stewart, 2001; Cady, Schreiber, Farmer e Sheftell, 2002 e Cady, 2007).

A “teoria do continuum” não foi desafiada até a metade do século 20 (JR G, 1955), quando as investigações clínicas e experimentais de Wolff (Wolff e Tunis, 1952; Tunis, Wolff, 1954) elaboraram o potencial envolvimento do sistema vascular intracraniano na enxaqueca. A consequência dessas pesquisas foi o efetivo fracionamento entre a enxaqueca e a cefaleia tensional e o enfraquecimento da “teoria do continuum” (Cady, Schreiber, Farmer, Sheftell, 2002).

A separação entre enxaqueca e a cefaleia tensional episódica foi fortalecida no final do século 20 (década de 90) pelos estudos que demonstraram um efeito limitado do sumatriptan nos pacientes diagnosticados com cefaleia tensional, quando comparados aos individuos com enxaqueca (Brennum, Kjeldsen e Olesen, 1992; Brennum, Schriver, Wanscher, Sclrensen, Tfelt – Hansen, Olesen, 1996). Portanto, a classificação da IHS se baseia na apresentação de sintomas (IHS, 2013 e 2018). A complexidade aumenta ainda mais quando ocorre a presença concomitante de mais de um tipo de dor de cabeça, ou uma ou mais características associadas de um tipo específico de dor de cabeça estão presentes na outra (Lipton, Stwart, Cady et al, 2000; Lipton, Diamond, Reed, Diamond e Stewart, 2001; Cady, 2007; Peres, Gonçalves, Krymchantowski, 2007; WE W, 1972; Featherstone, 1985; NH R, 1998; Waters, 1986; Sacco, 2008; Couch, Ziegler, Hassanein, 1975; Waters, 1973; Philips, 1977; Bakal e Kaganov, 1979; JR G, 1955; Spierings, 2001; Cady, Gutterman, Saiers e Beach, 1997; Celentano, Stwart e Linet, 1990; Kaganov, Bakal e Dunn, 1981; Anderson e Franks, 1981; Vernon, Steiman e Hagino, 1992; Marcus, 1992; Thompson, Haber, Figueroa e Adams, 1980; Nelson, 1994; Vargas, 2008; Cady, Garas, Patel, Peterson e Wenzel, 2014; Martin, 1967; Graham, 1979; Saper, 1978; Bigal, Sheftell, Rapoport, Lipton e Tepper, 2002; Mathew, Stubits, Nigam, 1982; Mathew, Reuveni, Perez, 1987; Friedman, Von Storch, Merrit, 1954; Ziegler, Hassanein, Couch, 1982; Messinger, Spierings, Vincent, 1991; Diehr, Wood, Wolcott, Slay, Tompkins, 1982; Ziegler, Hassanein, Couch, 1977; Ziegler, 1985; Scharff, Turk, Marcus, 1995; Lane, 2006; Haque, Rahman, Hoque, 2012; Drummond e Lance, 1984; Nachit, Chrysostome, Henry, Sourgen, Dartigues, El Hasnaoui, 2005). Por exemplo: indivíduos com enxaqueca podem se encaixar em diferentes tipos – enxaqueca sem aura, enxaqueca com aura, enxaqueca provável e cefaleia tensional episódica (IHS, 2013 e 2018; Lipton, Stewart, Cady etal, 2000; Cady, Schreiber, Farmer, Sheftell, 2002). Em estudos recentes que investigaram a efetividade do sumatriptan (Diamond e Medina, 1981; Lindegaard, Ovrelid e Sjaastad, 1980), os pacientes com diagnóstico preciso de enxaqueca e cefaleia tensional foram incluídos. Todavia, alguns estudos também incluíram pessoas que não preencheram os critérios da IHS e seus episódios foram denominados como enxaqueca e cefaleia tensional clinicamente definidas (Lipton, Stewart, Cady, 2000; Cady, Gutterman, Saiers, Beach, 1997).  Nesses estudos, o sumatriptan foi igualmente efetivo para todos os episódios (Lipton, Stewart, Cady, 2000; Cady, Gutterman, Saiers, Beach, 1997), o que dá suporte a hipótese da existência de um processo fisiopatológico subjacente comum para todas essas entidades (Lipton, Stwart, Cady et al, 2000; Lipton, Diamond, Reed, Diamond e Stewart, 2001; Cady, 2007; Peres, Gonçalves, Krymchantowski, 2007; WE W, 1972; Featherstone, 1985; NH R, 1998; Waters, 1986; Sacco, 2008; Couch, Ziegler, Hassanein, 1975; Waters, 1973; Philips, 1977; Bakal e Kaganov, 1979; JR G, 1955; Spierings, 2001; Cady, Gutterman, Saiers e Beach, 1997; Celentano, Stwart e Linet, 1990; Kaganov, Bakal e Dunn, 1981; Anderson e Franks, 1981; Vernon, Steiman e Hagino, 1992; Marcus, 1992; Thompson, Haber, Figueroa e Adams, 1980; Nelson, 1994; Vargas, 2008; Cady, Garas, Patel, Peterson e Wenzel, 2014; Martin, 1967; Graham, 1979; Saper, 1978; Bigal, Sheftell, Rapoport, Lipton e Tepper, 2002; Mathew, Stubits, Nigam, 1982; Mathew, Reuveni, Perez, 1987; Friedman, Von Storch, Merrit, 1954; Ziegler, Hassanein, Couch, 1982; Messinger, Spierings, Vincent, 1991; Diehr, Wood, Wolcott, Slay, Tompkins, 1982; Ziegler, Hassanein, Couch, 1977; Ziegler, 1985; Scharff, Turk, Marcus, 1995; Lane, 2006; Haque, Rahman, Hoque, 2012).

Além disso, muitos estudos demonstraram que não somente os pacientes com cefaleia tensional episódica e enxaqueca compartilham diversos sintomas, mas também a ausência de características clínicas únicas e diferenciais (Lipton, Stewart, Cady et al, 2000; Lipton, Diamond, Reed, Diamond, Stewart, 2001; Brennum, Schriver, Wanscher, Sclrensen, Tflet – Hansen, Olesen, 1996), fortalecendo o conceito de que enxaqueca e cefaleia tensional são extremos opostos de um continuum (Cady, Schreiber, Farmer e Sheftell, 2002 e Cady, 2007). Um outro achado concomitante e consistente foi um incremento nos sintomas associados e na severidade da dor (Lipton, Stwart, Cady et al, 2000; Lipton, Diamond, Reed, Diamond e Stewart, 2001; Cady, 2007; Peres, Gonçalves, Krymchantowski, 2007; WE W, 1972; Featherstone, 1985; NH R, 1998; Waters, 1986; Sacco, 2008; Couch, Ziegler, Hassanein, 1975; Waters, 1973; Philips, 1977; Bakal e Kaganov, 1979; JR G, 1955; Spierings, 2001; Cady, Gutterman, Saiers e Beach, 1997; Celentano, Stwart e Linet, 1990; Kaganov, Bakal e Dunn, 1981,Celentano, Stewart, Linet, 1990; Kaganov, Bakal, Dunn, 1981; Anderson e Franks, 1981; Thompson, Haber, Figueroa, Adams, 1980; Nelson, 1994; Vargas, 2008; Cady, Garas, Patel, Peterson e Wenzel, 2014; Martin, 1967; Graham, 1979; Saper, 1978; Bigal, Sheftell, Rapoport, Lipton e Tepper, 2002, Lane, 2006; Haque, Rahman, Hoque, 2012; Drummond e Lance, 1984; Nachit, Chrysostome, Henry, Sourgen, Dartigues, El Hasnaoui, 2005; Rasmussen, 1992). Consequentemente, os proponentes da “teoria do continuum” basearam a sua perspectiva no “modelo de severidade” (exemplo: a intensidade da dor aumenta com o acúmulo de outros sintomas, ao invés de diferenças qualitativas) (Sacco, 2008; Couch, Ziegler, Hassanein, 1975; Waters, 1973, Waters, 1986; Couch, Ziegler, Hassanein, 1975, Kaganov, Bakal, Dunn, 1981; Cady, Garas, Patel, Peterson, Wenzel, 2014).

Portanto, em uma das pontas do continuum está uma dor de cabeça severa, que tem uma maior probabilidade de ser unilateral, latejante e acompanhada por náusea, vômito, fotofobia e /ou fonofobia e agravada pela atividade física de rotina. No extremo oposto está a cefaleia tensional episódica: dor bilateral de fraca a moderada, profunda e podendo ou não ser acompanhada de fonofobia ou fotofobia. Entre esses dois extremos podem ocorrer uma ampla variedade de apresentações clínicas, incluindo as combinações entre as características.

Um modelo alternativo para explicar as apresentações variadas e sobrepostas das dores de cabeça foi baseada na convergência dos fatores vasculares, supraespinhais e miofasciais (exemplo: músculo temporal) no núcleo trigêmeo – cervical (NTC); o modelo vascular – supraespinhal – miofascial (“VSM”) (Olesen, 1991). Foi hipoteticamente sugerido que nesse modelo, a apresentação da dor de cabeça depende da magnitude da contribuição de cada uma das três fontes. Por exemplo: se o componente vascular for predominante, devemos ter uma dor de cabeça com as características de enxaqueca; ao contrário, se input predominante for miofascial as características serão de uma cefaleia tensional episódica. Potencialmente, esses três fatores provavelmente irão variar entre os indivíduos, e no próprio paciente, através do tempo, sendo responsáveis pela sobreposição e severidade variável dos sintomas e pelos diferentes tipos de dor de cabeça. Enquanto a incerteza cerca a extensão das influências supraespinhais, o modelo “VSM” considera o input supraespinhal como proeminente e com um papel facilitador (Olesen, 1991).

Uma outra hipótese, o continuum da cefaleia tensional – enxaqueca (Nelson, 1994), também considera a convergência e integração de diversos fatores no NTC. Como o modelo “VSM”, esses fatores incluem as influências vasculares e somáticas, entretanto existem diferenças entre os modelos. Nesse modelo, as matrizes somáticas de dor residiriam na região alta da coluna cervical (exemplos: músculos, ligamentos, disco C2-3), ao invés de “supraespinhal” (sistema serotoninérgico) (Nelson, 1994).

Só que isso é assunto para o próximo artigo……

 

Jorge Arrigoni – EQUIPE HEAD & NECK FISIOTERAPIA

 

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