Hoje vamos concluir a sequência de 3 partes dessa série onde abordamos sobre a perspectiva neurocientífica do tratamento  fisioterapêutico da cefaleia.

Se você ainda não leu as partes 1 e 2, segue abaixo os links para a leitura!

parte 1

parte 2

link do artigo no pubmed: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6443880/

Modulação da nocicepção no complexo trigêmeo-cervical: evidências dos estudos com animais

 

Estão surgindo evidências de que abordar a coluna cervical pode modular a dor no complexo trigêmeo-cervical. Nöbel et al relatou que a injeção de um estimulante nociceptivo (alfa, beta-me ATP) no músculo temporal em ratos induziu a atividade contínua de neurônios trigêmeo-cervicais com campos receptivos meníngeos. No mesmo estudo, anestesia local de músculos cervicais de forma individual, mas não no músculo temporal, mostrou uma diminuição significativa da atividade central provocada no trigêmeo (Nöbel, Feistel, Ellrich e Messlinger, 2016). Isso apoia a modulação da dor no complexo trigêmeo-cervical pela redução dos inputs aferentes nociceptivos musculares cervicais. O controle supraespinhal inibitório difuso nociceptivo sobre os neurônios convergentes no núcleo caudal do trigêmeo em ratos pode ser iniciado pela ativação das fibras do tipo “A delta” e C.  Villanueva et al e Bouhassira et al demonstraram que a atividade induzida dos neurônios convergentes no núcleo caudal do trigêmeo foi diminuída em 80% pela ativação das fibras “A delta” e C (Villanueva, Cadden e Le Bars, 1984; Bouhassira, Le Bars, Villanueva, 1987).

O input aferente originado na coluna cervical não está restrito ao complexo trigêmeo-cervical. A administração do fator de crescimento neural nos músculos semiespinhais do pescoço em ratos anestesiados mostrou não somente uma forte reação imune Fos (proteína produzida pelo gene precoce imediato c-fos, tornou-se um método bem estabelecido para mapear as estruturas do sistema nervoso central envolvidas nas respostas funcionais de animais expostos a uma variedade de estímulos ambientais) nas camadas superficiais I e II do corno dorsal medular de C1-3, mas também em estruturas supraespinhais como a substância cinzenta periaquedutal e no núcleo reticular lateral (Clement, Keay, Podzebenko, Gordon e Bandler, 2000; Mouton, Klop e Holstege, 2005; Malick, e Burstein, , 1998; Panfil, Makowska e Ellrich, 2006; Keay e Bandler, 1992; Keay, Clement e Owler, 1994). Quase 50% de todos os neurônios medulares que se projetam para a substância cinzenta periaquedutal foram encontrados na coluna cervical alta, sendo os segmentos dessa região uma fonte potencial importante para ativar essa área (Clement, Keay, Podzebenko, Gordon e Bandler, 2000; Klop, Mouton e Holstege, 2000).

A ativação da substância cinzenta periaquedutal ventrolateral pelas dores profundas somáticas (músculos cervicais profundos) e viscerais não somente levaram a um estado de repouso, assim como a uma inibição das aferências oriundas do trigêmeo (Keay, Clement, Owler, Depaulis e Bandler, 1994; Keay, Li, Bandler, 2000). Foi proposta a participação deste fenômeno na inibição das aferências do nervo trigêmeo (Knight e Goadsby, 2001; Goadsby, Bartsch e Dodick, 2008).

Modulação da nocicepção no complexo trigêmeo-cervical: evidências dos estudos com seres humanos

 

Em um estudo clínico, Busch et al estabeleceram a modulação nociceptiva no complexo trigêmeo-cervical, detectando uma diminuição das áreas de resposta e significativamente aumentando a latência de R2 do reflexo nociceptivo da piscada (nociceptive blink reflex) apenas no lado em que o nervo occipital maior recebeu um bloqueio anestésico com prilocaína em pessoas saudáveis. Esses dados não somente confirmaram resultados prévios relacionados a convergência das vias anatômica e funcional das vias aferentes trigeminais e cervicais, como também sugeriu que a sua modulação seria benéfica no tratamento das cefaleias primárias (Busch, Jakob, Juergens, Schulte-Mattler, Kaube e May, 2006). Em pacientes com cefaleia, o bloqueio do input aferente nociceptivo pela anestesia do nervo occipital maior ou das facetas articulares de C1-2 (Aprill, Axinn e Bogduk, 2002; Cooper, Bailey e Bogduk, 2007) provou ser efetivo para reduzir a dor de cabeça. Piovesan et al descreveu uma diminuição da dor de cabeça em pacientes com enxaqueca após uma leve massagem no nervo occipital maior (85).

Um outro estudo clínico realizado por Watson e Drummond (2012) mostrou que a técnica manual de pressão sustentada da região suboccipital foi capaz de provocar e inibir totalmente a dor de cabeça em pacientes com enxaqueca. A dor referida durante a provocação do teste foi diminuída ao mesmo tempo em que ocorreu a mudança no reflexo trigeminal nociceptivo da piscada. Esse descoberta supõe que a estimulação do tecido miofascial e suas fibras nervosas “A delta e C” através da pressão manual (modelo previamente proposto) pode ativar o sistema de controle difuso nociceptivo inibitório supraespinhal que atua especificamente nos neurônios medulares dinâmicos de amplo alcance, sendo assim capaz de modular a nocicepção no complexo trigêmeo-espinhal (Villanueva, Cadden e Le Bars, 1984; Sessle, 2000).

 

Tratamento fisioterapêutico da cefaleia e dor cervical

 

Incorporar a relação neuroanatomica e fisiológica entre os núcleos do tronco encefálico, coluna cervical alta e nervo trigêmeo no desenvolvimento do tratamento fisioterapêutico para a cefaleia através da coluna cervical (especialmente os segmentos superiores) é de suma importância. De acordo com a hipótese da teoria do portão para o controle da dor, uma alta quantidade de inputs aferentes proprioceptivos musculares oriundos dos segmentos cervicais superiores (Liu, Thornell e Pedrosa-Domellöf, 2003) direcionados ao sistema nervoso central podem alterar os inputs das fibras nociceptivas “A delta e C”.

A estimulação proprioceptiva através de exercícios ativos para os músculos cervicais pode diminuir a excitabilidade dos neurônios de segunda ordem no complexo trigêmeo-cervical (Coppola, Di Lorenzo, Serrao, Parisi, Schoenen, Pierelli, 2016) e a ativação do sistema de controle difuso nociceptivo inibitório supraespinhal pela estimulação miofascial através das técnicas de pressão manual da coluna cervical alta podem ser de extremo valor (Watson e Drummond, 2012).

A importância de um tratamento ativo para os músculos da cervical é validado pelos achados de uma revisão sistemática realizada por Varatharajan et al relatando que um tratamento ativo que inclua exercícios mostrou resultados promissores na redução das cefaleias associadas com a dor cervical (Varatharajan, Ferguson, Chrobak, Shergill, Côté e Wong, 2016).

Nas últimas décadas as pesquisas neuroanatomicas e neurofisiológicas com animais e humanos contribuíram bastante para o entendimento da ocorrência conjunta da cefaleia e dor cervical. Estudos obtiveram novas ideias sobre a relação neuroanatomica e neurofisiológica entre cefaleia e dor cervical e também levantaram questões de como essa relação pode ser influenciada pelo tratamento fisioterapêutico. As cefaleias (enxaqueca, tensional e cervicogênica), dor cervical e as disfunções musculoesqueléticas parecem estar relacionadas em estudos de caso-controle, embora a força, significância e a explicação para essa relação apresentem uma variação a cada tipo de cefaleia.

 

Desafios para o fisioterapeuta no tratamento da cefaleia e dor cervical

 

Os profissionais têm que considerar, através de um raciocínio clínico sólido, se as disfunções musculoesqueléticas estão relacionadas com a cefaleia apresentada pelo paciente e qual mecanismo neurofisiológico pode estar envolvido. É importante classificar as cefaleias de acordo com os últimos critérios da Sociedade Internacional de Cefaleias para determinar as disfunções musculoesqueléticas cervicais em pacientes com enxaqueca, cefaleia tensional e cervicogênica (Jull e Hall, 2018). Além disso, testes para a sensibilidade da dor podem ser incluídos para compreensão dos mecanismos fisiopatológicos envolvidos. Em seu julgamento clínico o fisioterapeuta deve considerar todas as informações coletadas na avaliação: sintomas de cefaleia e dor cervical, disfunções musculoesqueléticas cervicais relacionadas, testes das regiões cervico-cefálicas e extra cervico-cefálicas de sensibilidade a dor (limiares de dor à pressão) e reprodução da cefaleia pela pressão ou estiramento das estruturas musculoesqueléticas (Luedtke, Starke e May, 2018). Entender os mecanismos neurofisiológicos subjacentes (provocação nociceptiva local, dor referida, hiperexcitabilidade generalizada) permanece desafiador, mas necessário para identificar os pacientes que podem se beneficiar de tratamento cervical (Luedtke, Boissonnault, Caspersen, Castien, Chaibi e Falla, 2016). O conhecimento neurofisiológico pode ser muito útil para guiar o profissional no processo de raciocínio clínico.

É um grande desafio para os profissionais clínico e pesquisadores desenvolver uma estratégia de tratamento efetiva para cefaleia através da modulação dos inputs aferentes cervicais com o objetivo de diminuir a excitabilidade dos neurônios de primeira e segunda ordem no nível do complexo trigêmeo-cervical. Estudos experimentais sobre o efeito neurofisiológico do tratamento fisioterapêutico somados aos clínicos randomizados são escassos e urgentemente necessários. Enquanto isso, não há uma receita padrão para as intervenções na coluna cervical nos diferentes tipos de dor de cabeça. Todavia, os profissionais clínicos podem ser encorajados por evidências recentes a desenvolverem novas ideias e usarem esse conhecimento no raciocínio clínico para fornecer uma abordagem neurofisiológica, personalizada e baseada em evidências para os pacientes com dor de cabeça/cervical.

Dr. Jorge Arrigoni – Equipe HEAD & NECK Fisioterapia

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